segunda-feira, abril 03, 2006

EVOCAÇÃO DE ANTÓNIO BERNA

O fado de Coimbra, ou a canção de Coimbra, como preferirem, faz parte do património cultural do povo português, não só por razões estéticas mas também pelo que ele(a) representa social e historicamente na sociedade portuguesa, em que uma das sendas mais importantes será, com certeza a sua face rebelde, libertária e humanista, fermento da liberdade e da democracia.
O amigo que, hoje, é evocado é um dos nomes maiores da canção de Coimbra, uma figura incontornável do panorama musical e cultural do nosso país. Homenageá-lo é lembrar uma personalidade de âmbito nacional e não apenas concelhio.
António Bernardino começou a cantar fados de Coimbra ainda estudante no Liceu de Aveiro. Quando chegou a Coimbra, em 1963, assumiu deliberadamente a influência de José Afonso e Adriano, bem como da guitarra de António Portugal. Sem esquecer a obra inovadora de outras duas grandes figuras da canção de Coimbra – Luís Goes e Fernando Machado Soares.
Em 1967, António Bernardino foi incorporado no serviço militar, findo o qual, por razões da vida em que o amor não é razão menor, rumou a Moçambique, no início da década de 70, e aí permaneceu até 1974.
António Bernardino gravara o seu primeiro disco dez anos antes, disco em que avultam duas interpretações inexcedíveis – “Samaritana” e “Ao morrerem os olhos dizem”. Em 1969, surge a público um marco inapagável da música de Coimbra – “Flores para Coimbra”, um LP em que predomina a poesia de Manuel Alegre e a música de António Portugal. Além deste instrumentista, o que mais duradouramente acolheu a voz de Berna, o cantor de Ois da Ribeira teve o privilégio de ser acompanhado pelos melhores executantes da guitarra e da viola de Coimbra: os irmãos Eduardo e Ernesto Melo, Octávio Sérgio, Nuno Guimarães, Manuel Borralho, Francisco Martins, Hermínio Menino, António Brojo, João Bagão, Rui Pato, Durval Moreirinhas, Jorge Moutinho, Aurélio Reis, Luís Filipe, Humberto Matias, Fernando Plácido, Levy Baptista.
Não é também possível esquecer a participação de António Bernardino numa obra ímpar, repositório incontornável da canção de Coimbra: os seis LP intitulados “Tempos de Coimbra”. É ainda indispensável assinalar que ninguém teria divulgado tanto a canção coimbrã no estrangeiro como António Bernardino. A sua voz fez-se ouvir nos Estados Unidos da América, na ex-União Soviética, no Brasil, Argentina, Uruguai, Venezuela, Tailândia, Macau, Malásia, Angola, Moçambique, Cabo Verde, etc., etc., etc.
Com a morte de Berna desapareceu, porventura, a última grande voz nascida da raíz do canto coimbrão, uma voz com um registo médio admirável, uma voz que provinha de lá, de onde as guitarras engendram a sua música. Por isso, a guitarra de António Portugal foi companheira apaixonada de uma singular aventura pelas sendas da beleza e da intervenção transformadora do mundo e da vida.
Creio ser justo afirmar que a música de António Portugal, de Nuno Guimarães, Francisco Martins, Rui Pato e o corajoso canto de António Bernardino, erguidos do húmus fecundo da poesia de Manuel Alegre, são símbolo e marco perene e revolucionário da crise académica que abalou a Universidade de Coimbra em 1969.
A morte de António Bernardino calou uma voz primordial porque nela se entreteciam, com rara sensibilidade, os quatro elementos – terra e água, ar e fogo. Sendo uma voz de magnífica plasticidade, era, também, tal a de Luís Goes, uma voz de cobre: dúctil e maleável por onde passava admiravelmente o calor humano e a electricidade das emoções.
O canto de Berna era inteligência e emocionalidade plasmados numa brilhante simbiose.Era, acima de tudo, uma voz muito humana, a voz de alguém generoso e solidário, simples e fraterno, corajoso e tolerante. Berna era um invulgar criador de amizades e de climas de quente e cordial convívio. Porque essa era a sua verdadeira matriz, granjeou muitas amizades mesmo nas distantes comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo onde cantava até à exaustão, acompanhado por António Portugal e seus companheiros, ou apenas pela sábia viola de Durval Moreirinhas.
A morte, ao levar precocemente António Bernardino, levou com ela, de forma brusca e avara, um querido amigo de mais de 30 anos, arco de tempo que encerra milhentas lembranças que não quero evocar, salvo uma, a última, porque ainda hoje me magoa a memória. Reporta-se ela ao último momento de convívio, num almoço no distrito de Setúbal, seguido de amena cavaqueira, em que participaram também o Manuel Alegre, o Durval Moreirinhas e o Armando Marta, discreta e afectuosamente acolhidos pela sua querida companheira de uma vida, num espaço a que eu chamei a sua Ois da Ribeira mítica, transposta para um hectare situado na parte rural do concelho de Sesimbra, onde erguera um casarão e agricultava a terra circundante. Sabíamos que estávamos a despedir-nos um do outro, por isso percorremos a casa e a “quintinha”, metro a metro, ficando por vezes no ar palavras suas, de onde a esperança no futuro havia sido arredada. Então, as lágrimas afloravam aos nossos olhos e corriam. Vinham de fontes diferentes, mas eram como que água do mesmo rio – aquele que só corre pelo leito da amizade.
António Bernardino morreu.
A sua perda é inexorável, todavia a sua figura está gravada a fogo na prata viva da mais afectiva memória dos que o conheceram. Permitam, a terminar, que vos deixe um segredo: eu sei que algures, pelo tempo fora, haverá sempre uma guitarra a tocar com saudades da sua voz.
PAULO SUCENA
Intervenção na sesão evocativa de António Berna, organizada pela Arcor em 2005, com a participação do Grupo de Fados Menina e Moça. Texto retirado de guitarradecoimbra.blogspot.com

1 comentário:

d´OIS POR TRÊS disse...

É bonito recordar as coisas bonitas de Óis e esta noite foi realmente uma noite excepcional.
Mas não é estranho que os sites de Òis tenham de ir a sites estranhos buscar estas informações? De todo o modo, fica esta bela homenagem a um conterrâneo nosso. Fico felicíssiam por ser de Óis da Ribeira.